4.5.11

Antirrealidade.

E sentado na janela, tomando seu café, fumando o primeiro de muitos cigarros, viu uma cinza ficar parada no ar por muitos segundos, bem na altura dos seus olhos. Assim que se deu conta do imenso acontecido, pensou: "Isso não é real"; com a mão afastou para longe a cinza e toda a magia acabou-se, já que ele não podia dar-se ao luxo de ver flutuarem coisas que devem cair.
Mas não pôde apagar a ideia fixa de que nem tudo precisa ser como lhe disseram que seria. E enquanto a água do chuveiro cantava ao encontrar sua pele já cansada de viver, ele decidiu subverter o mundo. Foi trabalhar de chapéu e sapatos bicolores (mulheres com roupas justas e desconfortáveis, saltos muito cruéis olhavam para ele, julgando sua atitude tão fora de propósito). Já no trabalho, se divertiu sob os olhares sufocantes de quem preferia sofrer na labuta diária. Não falou mal de ninguém.
Duas semanas depois, contas feitas e refeitas, deixou o trabalho a fim de olhar o mundo. E olhava as pessoas todas, as passantes, as tristes, as loucas. E feito uma garoa muito fina que umedece tudo quanto toca, as gentes foram se infiltrando pelas suas frestas. Quando ele se deu conta, estava apaixonado demais pela existência. Amou poetas, amou desconhecidos, amou o cobrador do ônibus. Ele não era feliz. Era empírico. Chorava quando eram horas de lágrimas, todas as dores eram pacientemente tratadas, amava de todo o coração. Sem fazer nada de mal, nada demais, pintava, cantava, fazia tudo conforme a vontade vinha, sem se preocupar com os inevitáveis erros e descompassos.
Mas que era estranho, era estranho.
Um homem que sorri para desconhecidos, que horror! Que faz bolhas de sabão em pleno horário comercial. Que solta serpentinas no horário de pico! Um abuso, um absurdo. Uma disparidade, um pária, um perigo. Um louco.

Por fim, num dia em que distribuía morangos e amoras a crianças, chefes e mendigos, lhe ensacaram. Como se ensaca um monte desagradável de lixo, num saco preto, plástico, inerte.

2 comentários:

marcia cardeal disse...

eita que lindo! podia ser uma animação! bj bj

Jéssica disse...

Antirrealidade é uma boa palavra!