30.7.09

[entreatos]

o fato é que nem sofrer sofria.
- ter vinte anos é doce., ela disse, quanto cortava o cabelo com uma faca de cozinha - deus abençoe o dia em que você jogou meu canivete fora., e nem tinha rancor na voz. era mais um obrigada, mesmo.
e naquela maré de sentimentos de verdades, ela pensou: -ter vinte anos é mesmo foda., e eu não sei se isso era bom ou ruim, mas pela cara dela ela ruim (ou talvez a cera quente é que fosse daquelas torturas que ela tinha achado pra dar lugar às velhas). e bem, já fazia um tempo que não mentia, e se assustou. leu na parede: confesso, mitômana. e pensou: -será que digo isso mais pra assustar?
pegou o telefone, e não lembrava do número. meio escondida, arrancou a página da agenda de telefone, e a comeu. sim, comeu. - bem, eu ligo pro outro, então., mais um número que ela não sabia, mas esse tudo bem olhar. ela tinha medo de ouvir um não, ou, pior!, um te gosto. e bem, nessa idade você quer é sexo, mesmo.
lavou os cabelos recém-cortados, enquanto matava tempo: - hoje eu vou morrer de tesão, mas na praia.
quando deu por si, era mais taça rolando pra lá e pra cá, nem reparou no fim do som - mas o bom mesmo, é acordar, assim, com sexo sufocando a cama. bem, era quase um acordo, tácito, lânguido, cheio de afãs.

(...)

27.7.09

e no pescoço um lencinho azul, pra disfarçar.

e ao contrário do que todo mundo imaginava, o lencinho disfarçava melhor as olheiras que as marcas da noite.
disfarçava aquela cara cínica, fria. v-a-d-i-a.
disfarçava a enxaqueca recém-cultivada, o canino quebrado e o corte no pé.
sem contar o sangue atrasado, a ânsia de vômito e a tosse persistente que o tabaco guardava em cada passada larga.
um lencinho curto, até com as pontas meio esfiapadas, mas escondia bem as unhas roídas, cobertas com um esmate desses vagabundos, vermelho encardido.
desistiu da roupa toda preta, em nome do lencinho azul.
atou as angústias, deu nó. plantou aquele sorriso pré-fabricado, e saiu pra rua.
e quase parecia feliz.

22.7.09

[nipo]

durante os dias parecia serena, calma. ria, e tava pra ter alguém que tirasse ela do sério.
mas, já começava a se preocupar. acordava exausta. os lábios cada vez mais roxos dos dentes ferinos. doíam os pulsos, as mandíbulas.
de pronto, desconfiou da namorada, como é que andavam fazendo o amôr? ela só lembrava do gozo.
a namorada, por sua vez, com as olheiras cada vez mais fundas, cochilava a toda hora. é que não durmo bem, dizia. e o estranha flor da desconfiança rompendo todas primaveras, e invernos.
uma manhã, não podia respirar, doíam as costelas, que levantavam vergões.
não foi trabalhar.
quando a namorada enfiou a mão por entre suas pernas, disse: hoje não. e sem esperar o porquê, disse: dorme, amor.
e pronto. dormir, assim? é, é que é lindo te ver dormir.
e ela que nunca fora linda e sem pregar os olhos para o sono, ligou de madrugada pra irmã. que com medo, foi logo. e, seguindo as instruções, se enfiou muda por debaixo da cama.
e não fosse o estupor e susto, a irmã podia ter contado o que seu olho viu.


o sono leve, entre suspiros, dobrou os pulsos, o corpo, as pernas. sem abrir os olhos, se dobrou inteira.
e voou pelo quarto em silêncio: um passarinho de papel.

20.7.09

[breve entreato]

pensando nas agudezas dos dias, com cuidado para não furar os dedos, tirava os alfinetes da barra recém-alinhavada.