26.9.13

Campestre #01

 para ler ouvindo

Parecia que seria nunca, mas a luz pintou o céu negro estrelado. Vinha lento, preguiçoso, inegável. Impossíveis azuis escondendo as estrelas, anunciando a iminência do sol. Ondas de calor sutil prometiam o fim da noite, passarinhos acordavam o verde das folhas, os voos tingiam sem pressa o amanhecer. Um despertar harmônico, coletivo. Respiros em bocejos, gracejos.
Os olhos sorriam o acordar do dia. Corpos colados sob cores quentes, cabelos emaranhados de grama, flores, penas. Lábios em versos e beijos sedentos. A pele brilhava em pequenas explosões solares, mornas, os pés ansiavam os orvalhos macios, o mato lambia, ainda gelado, as pisadas matinais.
Os caminhos se encontravam, aquáticos, nas pedras murmurando sob a correnteza. Um riozinho. Um mundo de água e sussurro, despido e constante. Manchado das sombras, brilhava como ourinhos onde o sol tingia. A magia que só as mães-d'água têm nos atraía devagar, cada vez mais intensa.
Os dedos decididos submersos, os poros se rindo do frio despretensioso da água fresca. A ânsia terrestre de voltar ao mundo líquido era esticada, prolongada ao prazer sensorial da lentidão, da descoberta. As coxas arrepiadas, o sexo beijado, o estômago suspenso numa paixão de solfejos, os mamilos duros, a voz projetada e surpresa, a boca doce, os cabelos bailando em ondas.
Corpos cabem perfeitamente submersos e gelados. As ideias penteadas por peixinhos, os sentires tão simples, escorregadios, fluidos. Escorregam carinhos de encontro e amor total. A grande água orienta as pequenas águas de nós, em margens sensatas, afetivas, a intensidade de ser, e saber ser em outro.
Vive-se para voltar às águas.

5.9.13

Projeções #2

A solidão da cama tem qualquer coisa de confortável, de mais-melhor. Me sentir pequena e espaçosa, me esquentar devagarinho, dormir com cheiro de travesseiro. Ter o gosto dessas lembranças tão boas, escorregando pelos lábios os sorrisos dos beijos roubados, entregados, de tanto beijo. A minha pele mistura os sentires todos num desencontro de carícias e suspiros atemporais. Ir misturando os desencontros com pó de sonho, sonhar em cores de anil.
Penso em quantos olhos eu mirei bem no fundo, os laguinhos coloridos que me mudaram dentro. Lembro dos amigos que tenho, das teias de amor que a gente se prende. O sorriso cúmplice da manhã, as despedidas, a continuação de todo o amanhã, enfim.

Acabei entendendo mais de amor, pelos dias que ainda existirem.

4.9.13

Derramamentos #2

Você é água. Sinuosa, corrente, transbordante, um rio que toma a terra seca e sedenta, molhando os lábios, a língua, as ideias mais remotas. Onde quer que toquem suas águas, frescas, brotam flores.

Te olho de relance, tem cores de marés, de vagas, de ressacas. A tua grande água atrai as pequenas águas que me bolem dentro, orbito aquática nos teus encantamentos. Te vejo quando não me olha, seu corpo ondula, excita, se entrega, flutua. Não sei a profundidade dos seus olhos, e me deixo ser tragada lentamente para esse infinito que se desdobra em rio, em riso. 
Não há tempo no espaço-liquido. Sempre te soube de cór, inteira e nublado mistério, sem saber do tempo casto que virá. Sou só sede e cedo a tuas aquidades.

20.8.13

Solidão agosto, relendo.

Desde que comecei a procurar casa, desde sempre em Porto, olho casas com desejo. Todas, as viáveis e as não. No mundo dos quereres, tudo é possível, tudo é viável, tudo é divino e maravilhoso. Quando decidi me mudar com os amigos, tantos deles, o olhar se refinou, as placas de aluga-se saltavam aos meus olhos. A pé, de bici, de dentro dos ônibus. 
Agora eu não tenho casa. Eu existo no tempo, em muito espaços. Um pouco lassa, um pouco extenuada, um tanto inexistente. E no meu caminho de rotina tem a rua da República, e sua imensa casa vazia. Seu enorme jardim largado. Seus espaços em hiatos. Eu vazia dela, ela vazia de vida. Eu transbordante de vida, ela seca e sussurrante, ávida.
Me consome saber da vaziez da cidade, das casas fantasmas, da poeira assentando sobre tudo que caberia num mundo doce: ninhos, afetos, travesseiros. Vagamos nós, famintos, friorentos, como uma gota que pinga no vazio, o eco. Reverbero inteira sem nenhuma certeza. 

E quando chove, sinto até os ossos gelados, nessa cidade blasé e sem ternura. Fico parada, desejando estar mais ali. Mais dentro. Entranhada naquele cimento. Eu seria boa para ela, com uma panela quente e fumegante, meus amores enrolados num tapete felpudo. Eu seria lar para aquela casa tão só. 

Sigo amando 
só 
a casa 
sem nó.

12.7.13

solidão.1

De tanta amargura o olho vira sal. O coração se comprimindo numa caixinha do tamanho do nada, deixa só um soluço quebrado na garganta.
Incômoda. Inapropriada. Indesejada. Descartável. Os sentimentos são antigos e se sobrepõem, comprimindo mais, soterrando meus sentires suaves, as doçuras. Amalgamando a desesperança. A certeza de ser só um erro, um desvio, uma pedra no caminho. Nociva, cruel e exasperante, num mundo de água eu sou toda óleo. 
Do amor, só sobrou o medo, o desengano, a fratura frágil e exposta, latente, sangrenta. Não tenho minha personalidade, meus climas, meus tempos. Espero uma onda ou a morte, o que me arrastar primeiro.

26.5.13

Derramamentos #1

Da flor, o mistério. Não sei se sabes, mas eu não sei. E o não-saber-não-ser-sem-desser, mais saboroso que qualquer olhar, vai adoçando meus dias, e pinga-pinga-pinga assim, delicada. Te brota em mim, hortelã, folha atrás de folha - dobrada, verdejante, um coração; cheiro atrás de cheiro - meninamulher. E enche meus dias de borboleta e abelha e mel. 
Me desviro num jardim, metade sabor, metade cor, só para te encantar. Desviro os versos em frutas, que seus lábios gostam, sorriem. Me encanta seu sorriso, assim, enviesado. Ou daquele jeito outro, escancarado. E os lábios num biquinho, passarinha, para me desvirar em nuvem, flutuo, a brisa me desfaz. Chovo em mim e não te alcanço.  
Fico, sem querer, na ponta dos pés. Pisco as pestanas, cheias de orvalho, para te ver, bailarina, pisando levinha aqui-e-ali. Me estico até lá longe e não te toco, não sei seus macios nem seus quentes. Do que me resta, contemplo seu existir tão tocante, com dedos tremelicando, coração na gangorra. E, mesmo antimusical, solfejo meus ais em mi menor, e lá.

De todos os mistérios do planeta, tinhas justo que ser a flor.

13.5.13

Da adolescência tardia.

Uma onda imensa, um calor intenso, estrelinhas que piscam-piscam-piscam. Me sinto adolescente, desistindo e recomeçando, acreditando na felicidade. Acredito tanto que o mundo vai ser mais doce, eu vou viver de suspiros, risinhos e asas de borboleta. Não consigo aceitar as obrigações cinzas e enfadonhas porque sim, quero motivos doce para caminhar, para seguir, para querer viver.
Sinto tudo e sinto tanto, pulso inteira, tremo com as menores brisas, os sutis toques, os subliminares verbos. Escrevo como se escrevesse um diário, cheio de poemas e corações. Vivo como se vivesse um diário, com canções bobinhas, segredos com amigas, códigos secretos, escondendo as doçuras e mistérios de tudo quanto não pode ser tocado.
Vivo as amizades queridas, anoto nas bordas dos livros, bebo demais, me apaixono pra sempre a cada sexta-feira, parto meu coração e esqueço que ele está partido, assisto Amélie Poulain. Escrevo cartas jamais entregues, esqueço de lavar a roupa, deixo o esmalte roído, ligo no meio da noite pra não me sentir sozinha.
É euforia e vazio, festa e solidão, amortotal e lágrimas de água do mar. 

Dentro de mim, é tudo névoa e sparkles, e sininhos tocam no caminho do vento. Só queria poder abraçar o mundo com sutilezas.