11.12.12

Prelúdio.

- mexe qualquer coisa dentro doida
já qualquer coisa doida dentro mexe.
(caê)

Como num bordado imenso, a beleza, a bossa vêm da repetição. Esperamos com calma o tempo de trançar as linhas que esboçam um desenho que não enxergamos, porque enorme. Que não tem fim, porque espontâneo. Não sabemos o que virá. Como virá. Se virá. 
Sei dos matizes, das cores, dos tons. Sei dos cinzas, dos hiatos, dos nós. Se enquanto traçamos sobram-nos as lágrimas e os ais, faltam as razões, desviram-se em fins. E só quando se torna passado enxergamos a luz e os brilhos, porque tem escuridão. Os vazios delimitam os detalhes mais sutis. Mais nossos. Ainda que o tempo-espaço seja cruel e fira os desejos, extrai com cuidado os aromas mais profundos. 
Somos bicho, pele, cheiro. Fome, instinto, tesão violento. Fluídos, suor e sangue. Numa noite carregamos energia luminosa para clarear os caminhos tantos outros. Expostos.
Somos verbo, poema, canção. Escolhemos a dedo as palavras-imagens que se erguem como castelos entre nós. Translúcidos e etéreos, juramos sob a lua vazia as delicadezas que só cabem a nós. Que esmiuçamos  ao longo das noites mais molhadas de saudades e desencontros. Delicados.
Afino meus gestos para seus acordes precisos. Sinto a pele, as ideias emaranhadas. Me misterio para você descobrir. Desabrocho, para você me tocar.

26.11.12

Ostre-se.

Nasceu dobrada, deslizando sob o azul. Por fora, concha. Por dentro, molusco, mole, víscera. Nasceu sem saber que tinha nascido. Cresceu sem saber que existia. Sabia o sal, o mar, a maré, o clima. Sabia quente e frio, mas não sabia  calor. Não sonhava, porque não tinha futuro, não tinha medo, não tinha desejo. 
Escolheu de cama uma pedra, e lhe bastava a dureza contra a pele áspera. E num bocejar distraído, como quem se espreguiça sem largar do travesseiro, engoliu um grão. Um pesadelo grão, um grão pesado. Um estrangeiro invadindo seu âmago, seus mistérios, seu não sentir. Não sabia gritar, não tinha abrigo que lhe protegesse do estranho. Seu meio exposto, do lado de dentro. Como não sobrasse mais nada, chorou. 
Tanta lágrima, e a dor era constante, irritante, aguda. Lágrima branca, a escorrer pelo tempo. Os sentires amargos se espalhando como raízes conscientes na sua existência tão sensorial. Já esquecida de sentir o azulmar, por sentir tanto o pesogrão, um dia não existia mais mar. E a dor da secura quando já tão acostumada à água, o incômodo. 
Dentro, peso. Fora, árido.

Desdobrada. Por dentro, um segredo. Por fora, um emaranhado de dedos e visgo. Visceralmente exposta, pulsando numa morte seca, sem sangue. Um grão parece leve quando não há água-e-sal. Um riso humano se espalha no ar, se esparrama, se ri: é uma pérola. 
Desostrada, a massa cinzenta em meio a tantas outras iguais, não gosta da risada feliz. 

22.11.12

Retratinho #1

Era boneca de pano. Não por ser de macela e ter olhos de botão, mas por não saber ser outra coisa. Não era como os blocos de montar, que podiam ser tudo. Era uma coisa só. Não tinha bolhas de sabão, nem sininhos. Tinha pele surrada de tecido qualquer. Tinha um vestidinho já desbotado, de tanto ver água-varal-sol. Não tinha mais o cheiro do seu recheio, era fadada a ter caruncho ou mofo, rasgar. 
Era boneca de pano, e não ficava na ponta do pé. Não voava por cima do muro, não conhecia o mundo. Não por falta de sonhar, mas por falta de quereres. Quando se é boneca, o sorriso na cara é todo-dia, mas vai-se secando tudo por dentro, murchando, e sorrindo. A boca pintada e os olhinhos tortos de botão.
Era boneca de pano. Num mundo em que tudo tem motor-corda-botão. Era aquilo ali, só. Não brilhava, não zunia, não sabia as horas. Num mundo em que tudo é de plástico, de metal, virtual. Tinha as costuras pra fora, um bracinho mais grosso que o outro. Não tinha articulações, nem cintura, nem peito. 
Era boneca de pano e se sonhava passarinho, barco, balão, nuvem. Passava os dias no fundo do cesto de vime, esperando a infância, ou o que viesse depois.

19.11.12

O zoológico imaginário (ou Como Freud parou de fazer sentido pra mim)

Não sei se é a idade, ou a responsabilidades, ou as contas ou a saudade. A verdade é que quanto mais passa o tempo, menos culpa minha mãe tem. Claro que sempre será culpa dela, para o bem ou para o mal, mas parei de culpá-la pelas minhas próprias frustrações (beijos pros infinitos analistas).
Uma das culpas aleatórias que mais atribuí a minha mãe-preta foi por nunca ter tido pets. Eu sempre quis um cachorro. E nunca tive um. Hoje eu de fato entendo que seria um inferno uma criança (depois uma adolescente) num apartamento com um cachorro. Gatos fazem cocô na areia, tomam banho sozinhos, não exigem carinho e nunca saem pra passear e já não é fácil. 
Mas eu só sei disso agora.
Exumadas as culpas, ao que interessa: ao longo dos anos, eu fui criando um zoológico imaginário. Não contaremos os dinossauros, e a fase em que eu tinha plena certeza de que seria bióloga um dia para encontrar os tais répteis. Lembro quando era bem pequena, assisti Meu amigo Panda e tudo que eu mais queria na vida era um pandinha (anos depois, já crescida, eu e mãe ganhamos dois bambuzinhos e seria deselegante negar que achei ser esse o momento exato pra adotar um panda). Sem pandas, tampouco cachorros, eu tive um peixe dourado, o Pixe, e muitos outros peixes depois. Mas amor de peixe é esbugalhado, e eu era só uma menininha. O mais estranho de tudo, é que por anos morei na mesma casa que o Linus, o cachorro que passou a vida preso num cercadinho de 1 x 1m, sem nunca ter encostado a mão nele. Hoje tem a Amorinha e o Eros, meus amores incondicionais, mas o zoológico já está feito.
Além de um blackbird/ frango/ poba e um elefante tatuados, eu tenho uma infinidade de pelúcios: um cão teórico socialista, uma vaca-hipopótama de uma pata só, um urso chocolate, um tarepanda. Um tatu de argila, um gato de madeira, um elefantinho roxo florido, infinitas joaninhas, uma girafa de pois, tantas roupas e bijuterias com temas animais quanto uma criança de sete anos. Além disso, a minha eterna vontade de pegar os insetos com a mão e a tristeza pelo vôo insistentes dos bichinhos; e atualmente como defensora dos insetos contra as caçadas do Eros. 
E que tem isso? 
Não sei. Mas é um zoológico lindo. E esses bichos, mainha ama todos.


P.S. Nunca li Freud nem nada, era só pra ficar com um nome chiquetoso. 

19.10.12

Cotidiano ou Pseudo crônica sobre o insuspeito.

(capítulo I)

ahh mentevaz iapareceque oosso do jo e lhovai esfarelar eseeuacho que nãopensoemnadai sso jépensarcorrecorrecorre!fo geenão pá ra nem pra respirardeixa o aaar pralaquehojeamor tetá mais pertoque eu achei que elaiaestarumahoraououtra elaiachegar masquevaiachar a minh amãeela bemdisseprae unãovir.eeuvim eu to eutenhoquecorrer e fugir e olhar pra calçadapulanaruacui dadocom o 
bu 
ra 
co 
no 
chã 
umeu 
pé 
que 
brou 
tem 
ma 
bo
ta 
na 
mi 
nha 
nu
.

.....

Não segure as portas. Isso provoca atrasos em todos os trens.

.....

- Que bom que você veio! Quer vinho?
- Eu só quero te comer.

.....

XXX,
hoje eu percebi que eu não te amo mais. Eu não vou mais te ligar, eu não vou mais aparecer. Te cuida.
assinado:Maria.



(capítulo II)

Diário Popular
Menino é confundido com ladrão e morto na madrugada de ontem. p.5

.....

Olha dotô, essa minina começô a gritá no mei' do trem e esfaquiô todo mundo que tava tentano entrá. Seizóra da tarde.

.....

berros ao fundo: FILHADUMAPUTA!
enfermeira: Doutor Parruda, tinha um saca-rolhas atravessado no pênis do paciente do quarto 9.

.....

estampido seco, sangue no asfalto.



(capítulo III)

Um dia eu vou parar de vomitar o que eu como. Eu vou parar de correr 4 horas nessa maldita esteira ergométrica. É. Eu vou ter dinheiro, vou fazer uma lipo, tirar tudo e botar silicone. 2 litros. E daí eu nunca mais vou entrar num metrô. Eu nunca mais vou encostar no zé-povinho. Vinho, eu vou viver de vinho. Eu vou trepar com todos os caras bonitos do serviço. E nunca mais vou ter que chupar o pau do velho que me paga e me dá folga, só eu deixar ele ver meus peitos. Eu vou parar de fumar e vou cumprir minhas resoluções de ano novo. Eu vou parar de querer viver numa novela.

Tá na hora da minha sopa.






(Texto original do Devaneios ao Pesto, um dos meus primeiros blogs. Postado em 25.03.08)

16.10.12

Além do que se vê.

Acho bonito quando te vejo assim, sem a pose. Te vejo menino e descabido, absurdo, doce. Sinto uma vontade imensa de te prender entre os braços e conversar amenidades, porque sei que você entende das coisas mais profundas de mim.
Espero que o tempo seja leve, que o caminho tenha mais prazer que dor, que venham mais noites que tempestades. Sigo o caminho ruminando as ideias e os sentires, esperando que minha luz torta te sirva de lanterninha no caminho. 
Quero te escrever coisas bonitas, mas me falta verbo. (Você escreve melhor que eu, e mesmo assim eu tento)

Te amo.

12.10.12

Casa.

fecha-se a porta do bar, os trôpegos saem.


- Olá, mundo. Ou você roda, ou eu estou louca. Olá, loucura, quanto tempo! suspiro. As belas mulheres continuam aqui, as doces amizades também. O céu é ainda brutalmente azul, e o sorriso ainda sai espontâneo.

canta na rua vazia, e dança acompanhando o passo: Bom dia, mundo, é hora de dormir.

infinitas escadas: (O mundo acabar, 
a noite ter seu derradeiro fim. 
Sem uma saideira. 
Beber a cama, 
as nuvens acumuladas sobre o céu de cetim. 
Um trago dela 
um trago dele
 e fim.)